domingo, 24 de maio de 2015

Relatos de um Sorveteiro Deleitado

   A história a seguir foi encontrada por meu amigo Chubble, escrita numa página rasgada de um diário a mercê do lixo hospitalar encontrado ao fundo do terreno de uma academia de artes cênicas. O papel continha digitais engorduradas, e um leve aroma de sorvete de limão. Contudo, Chubble insistiu que eu transferisse tais linhas para o público, na intenção não apenas de imortalizar sua mensagem, mas também na esperança de que algum humilde leitor conheça o significado de “tapulhice”.

   (Os nomes do sorveteiro Rodrigues da Cunha e do garoto Bernardo Fernandes foram retirados da história para evitar maiores constrangimentos ou processos judiciais contra o paupérrimo escritor.)



   Deleite. Quer palavra melhor do que essa? Que outras sílabas poderiam de forma tão singela representar o doce momento de contato entre o paladar e tal creme refinado? A cena intocável na qual meus clientes tão satisfatoriamente são invadidos pelo sabor gelado do melhor sorvete do bairro. Foi tal razão que me levara ao inscrever tais sete letras na lateral do carrinho. Quem disse que um mero vendedor de sorvetes não pode querer se expressar de forma poética? E é fato sabido por muitos que a palavra “Deleite” por si só soa mais poética do que certas estrofes que encontramos pela vida.
   Mas deixemos deleites de lado, pois tal história não é sobre mim. Nem mesmo sobre os sorvetes que há anos vendia no mesmo ponto. Ambos são só circunstâncias que rodearam o jovem garoto. Bochechas com sardas, cachos castanhos, e língua bem solta aos oito de idade. Seu nome... nunca soube. Mas o descrevo como ninguém mais poderia. Pois só eu sei dos poderes que alcançou antes do fato. Só eu sei do mais importante... que não foi o fato... mas sim o efeito... (Não se preocupem, meus sorvetes não são tão complexos quanto o que costumo dizer por aí.)
   Voltemos então ao primeiro dia, no qual os olhos esverdeados me fitaram de forma singela. Nunca gostei de crianças, mas sempre fingi adorá-las. Afinal, a maior parte do lucro de um sorveteiro vem da remota arte usada pelos jovens chamada “birra”.
   Mas desacompanhado jazia o jovem garoto, me fitando como se desejasse apenas com os olhos me trucidar.

- Posso ajudá-lo? – indaguei, fazendo-o despertar do transe momentâneo.

- Ah, me desculpe... Estava pensando em qual dos sabores preciso escolher...

   Fitei-o de sobrancelha erguida, e lhe entreguei o cardápio.

- Bom, as opções são muitas. Das mais variadas. Morango, creme, menta, chocolate... todos refinados com uma receita especial de família...

- Não são os sabores que importam, seu tapulho! – ele me repreendeu.

- Como é...? Tapulho?...

- Não estou em dúvida quanto aos sabores! Tenho oito anos e sou gordinho! É claro que quero o de chocolate! Mas o que eu quero não importa... preciso encontrar o Poder Secreto...

   Ele desviou os olhos e voltou-se para o cardápio. Permaneci fitando-o com olhos confusos. As razões pelas quais nunca gostei de crianças pareciam dançar a minha frente.

- Você por acaso não teria a lista dos poderes em algum lugar, teria?

- Lista dos... garoto, eu não tenho tempo pra brincadeiras. Escolha logo o sabor que deseja.

- Ai, seu tapulho! Não conhece nem mesmo os poderes dos sorvetes que você vende?! É a história da sua família!

   Soltei um suspiro pesaroso e contei até dez mentalmente, enquanto o insistente garoto permanecia me explicando:

- As receitas de sorvete da sua avó têm ingredientes mágicos especiais. Cada um dos sabores nos dá poderes diferentes, capazes de fazer coisas fantásticas acontecerem!

- Ok, garoto. A história é legal... mas de onde tirou essa ideia? – acabei cedendo uma risada.

- Não é só uma história. Sua avó era uma bruxa bondosa, que enfeitiçava os sorvetes para alegras as crianças. Minha mãe a conheceu há muitos anos, e contou tudo pra mim.

- E posso saber onde está sua mãe? Ela não devia deixar um garoto tão distraído sair por aí andando sozinho...

- Você ainda não acredita, né? Tô falando a verdade, moço! Seus sorvetes são mágicos! Minha mãe descobriu os poderes deles quando era criança, e me trouxe aqui uma vez quando eu era pequeno... Mas ninguém até hoje conseguiu encontrar o Poder Secreto... e eu vou achar...

- Poder Secreto? – rebati com indiferença - Garoto, acho que eu saberia se vendesse esse tipo de coisa no meu carrinho.

- Não se preocupe. Estou acostumado a pessoas não acreditarem em mim. Mas vou provar pra minha mãe que sou capaz de encontrar o Poder Secreto. Vou tomar todos os seus sabores de sorvete, até encontrá-lo... mesmo que isso gaste todo o tempo do mundo...

   O pobre jovem claramente era perturbado, mas não recusaria vender mercadoria a um consumidor tão ávido por meus sorvetes. Foram necessários alguns minutos para que ele por fim optasse por groselha.
   Deu-me o pagamento em moedas e partiu sem dizer coisa alguma.
   Quase que no mesmo horário, no dia seguinte, retornou com o mesmíssimo olhar penetrante.

- E então? A groselha te deu algum poder fantástico?

- Você ainda não acredita em mim, não é mesmo, seu tapulho? – murmurou o jovem – Bom, infelizmente não é o Poder Secreto. Mas, assim como todos os outros, seu sorvete de groselha tem sim um poder especial. O poder da paixão. Funciona melhor do que poções do amor...

- Ora, essa! – exclamei em ironia – Não vá me dizer que o sorvete lhe arranjou uma namoradinha.

- Ainda sou muito novo pra isso, seu moço. Mas hoje na escola, durante o recreio, Bianca Fagundes deixou que eu sentasse do lado dela e segurou nas minhas mãos durante todo o tempo. Isso com certeza foi efeito do sorvete de groselha! É o poder da paixão!

- Magnífico. – ergui as sobrancelhas – Mas parece que não era esse o poder que procurava.

- Pois é... vou ter que experimentar mais um... escolho o de menta.

   E o de menta a ele entreguei. Novamente, deu-me o pagamento em moedas e partiu sem dizer coisa alguma.
   Passou-se o dia, passou-se a noite, e no mesmo horário matinal, surgiu o garoto a minha frente. Começava a gostar da brincadeira, e sorri ao lhe dizer:

- E então? Que poderes a menta lhe deu?

- Ultra velocidade! Você não faz ideia de como é um poder bacana! Ganhei de todos os meus colegas na aula de atletismo!

- Não me diga... quer dizer então que finalmente encontrou o que procurava?

- O quê? Não! Que tapulhice! Ser veloz é divertido, mas não chega nem perto do poder que eu realmente procuro!

- Mas garoto... o que lhe faz pensar que esse tal Poder Secreto realmente está entre os meus sorvetes?

- Minha mãe disse que estaria, e ela conheceu sua avó. Ela nunca esteve errada sobre nada, e não será a primeira vez.

- Bom... se insiste nessa ideia... qual sabor escolherá?

- Hmmm... o de limão, por favor.

   E o de limão a ele entreguei. Outra vez, deu-me o pagamento em moedas e partiu sem dizer coisa alguma.
   Mas eis que em tão próxima manhã surgia novamente, disposto a comprar um novo sabor.

- E então... o que me diz sobre o limão?

- Você não vai acreditar! Ele me deu o Poder da Inteligência! Aprendi toda a matéria da escola em apenas um dia, e fechei a prova de geografia! Os professores chegaram a me elogiar!

- Ora, essa... se eu soubesse que meus próprios sorvetes podiam me fornecer tamanha grandeza! – a cada vez, render-me a brincadeira do garoto parecia mais simplório e divertido – Mas e então? Era esse o poder que procurava?

- Ainda não. Vou ter que experimentar mais um.

   E por dias tal rotina foi feita da mesma maneira. Passaram-se incontáveis manhãs, nas quais o garoto ao mesmo horário sempre surgia, contando-me sobre os poderes do último sabor escolhido e requerendo um sorvete diferente. Não podia negar... a cada dia, me afeiçoava pela criança. Nem mesmo me importava em entender o real significado de “tapulho”. Cheguei a temer que ele enfim dissesse ter encontrado o tão procurado sabor, e não mais me visitasse todas as manhãs.
   Juntos, passamos por quase todo o cardápio. Cereja, morango, chocolate, prestígio, goiaba, kiwi, flocos e até mesmo chiclete. E os poderes que o jovem dizia adquirir eram dos mais variados tipos... Energia Incessante, que o permitia manter-se acordado durante toda a noite. Vencedor dos Esportes, que o fazia invencível em qualquer jogo que se arriscasse a competir. Sorte Reluzente, na qual os pais decidiam lhe aumentar a mesada e na rua ele encontrava moedas perdidas. E vez ou outra, façanhas ainda mais ilógicas saíam de sua boca... ao afirmar que o de goiaba o havia feito flutuar, e que o de chiclete permitia que ele se teletransportasse.
   Mas por mais que os poderes lhe enchessem de alegria e boas histórias a contar, o jovem afirmava sempre estar ainda em busca do Poder Secreto, o qual, por mais que tentássemos, nunca conseguíamos acertar.

- Os sabores de sorvete estão acabando. – adverti - Não restam muitos no cardápio...

- Não se preocupe. Sinto que estamos chegando perto. Enfim... escolho o de amêndoas.

   Aquele foi o último sorvete que vendi. Jamais pude voltar a proporcionar qualquer tipo de deleite... pois a memória desta manhã se encontra para sempre no local mais impertinente de minhas lembranças.
   Acredito que o fator que me marcou profundamente não foi a tragédia em si. Não foi assistir os lábios do garoto se inchando com rapidez, enquanto sua garganta se fechava. Não foi tentar inutilmente salvá-lo, enquanto clamava por socorro até que uma ambulância aparecesse. Não foi nem mesmo receber mais tarde a notícia do Doutor Carlos, que duramente me disse que o pobre jovem possuía uma grave alergia a amêndoas.
   O que realmente me marcou foram as últimas palavras que pude ouvir dos lábios da criança. Caído na calçada, o garoto teve ainda tempo de dizer-me seus últimos devaneios, antes que sua garganta se fechasse.

- Achei o Poder Secreto... Era esse... era esse o Poder...

- Acalme-se! Acalme-se! Eu vou salvá-lo! Vai ficar tudo bem! – eu gritava em total desespero.

- Não se preocupe. Era esse o poder que eu procurava. O poder do sorvete de amêndoas. Aquilo que eu quero há tanto tempo... – e foi então que seus lábios se movimentaram pela última vez – o poder de reencontrar minha mãe.


Felippe Alves Barbosa

terça-feira, 5 de maio de 2015

Relatos de um Gnomo de Jardim

  

   Há três décadas e meia que moro em frente à grande casa de tijolos amarelos, e há trinta e cinco anos que observá-la em rotina é meu fazer mais prazeroso em dias de tédio.
   É curioso observar seres humanos. Suas idas e voltas, suas rotas e vindas. Seus delírios, paixões e devaneios. O modo como eles vivem, mas deixam de observar. Cabendo a nós, móveis, imóveis e mobílias assistir a suas histórias e apreciar suas insanidades. Sim... são um espécime devidamente peculiar. Foi o que soube no dia em que os primeiros moradores do grande casarão trancaram a filha adolescente no quarto do segundo andar.
   Como todo bom pai se esquece de que um dia foi jovem, o já não mais jovem Senhor Fagundes trancara Sofia em seus aposentos, proibindo-a permanentemente de manter contato com o garoto mais velho que a paquerava no fim da rua.
  
   Mas é fascinante observar como os jovens sempre vencem barreiras pelo amor.

   Em sua sagaz perspicácia, Sofia passou a utilizar a caixa de correio como instrumento de troca de mensagens. Deixava um bilhete todas as noites preso numa fresta, o qual o apaixonado Lucas coletava durante a madrugada, e respondia com outro recado em resposta que ela coletava pela manhã.
   Pude ler nos lábios de Sofia a mensagem deixada pelo garoto no dia em que ele lhe escreveu dizendo que sentia sua falta, e que odiava o fato de ela estar trancada lá em cima. Não pude evitar de me emocionar ao vê-la sussurrar e escrever a resposta, guardando o bilhete na fresta da caixa de correspondências:

   “Ainda te olho todos os dias daqui de cima, com o mesmo amor que sempre tive por você.”

   Não me contive de ansiedade, e passei toda a madrugada de olhos atentos, aguardando o momento em que o jovem surgiria e encontraria o recado. Naquela noite, entretanto, Lucas não apareceu. Sofia viu-se em espanto ao notar que não houvera resposta do garoto quando acordou no dia seguinte. Deixou seu recado guardado no interior da fresta, acreditando que talvez mais em breve ele viesse e encontrasse o bilhete.

   Mas é fascinante observar como paixões vêm e vão qual o vento matutino.

   Nunca soube o que houve com Lucas, mas ele nunca mais voltou. Seu desaparecimento acarretou em choros e soluços vindos da garota do andar de cima, e o bilhete permaneceu guardado na fresta e sem resposta.

   Mas é fascinante observar como a maturidade limpa mágoas e feridas.

   Sofia passou no vestibular e foi cursar medicina em Belo Horizonte. Os pais passaram a achar o casarão um tanto espaçoso, e venderam o imóvel para um colecionador de bugigangas. Guilhermo era um homem esguio, que instigou minha curiosidade desde a primeira vez que o vi entrar pela porta da frente, carregando caixas e caixas repletas de suas coleções. Algo nele o fazia bizarramente misterioso. Talvez fosse o cavanhaque sempre deixado por fazer, ou talvez a quantidade surpreendente de discos de vinil que organizava nas prateleiras, todos capazes de serem vistos pela vidraça das janelas.
   E assim, assisti curioso por dias a rotina do nobre colecionador, que desempacotava diariamente coleções de quadros, estatuetas, vasos e itens dos mais variados tipos, os quais preenchiam prateleiras e estantes pelos cômodos da casa. O casarão mobiliado tornou-se brilhantemente ornamentado pelos milhares de artefatos.

   Mas é fascinante observar como o material muitas vezes peca por não preencher o espírito.

   Enfurnado em suas coleções, Guilhermo se sentia solitário. Sozinho e desamparado. Entrou em depressão em uma quinzena de meses. Depressão que resultou em suicídio, vindo do cano de um dos revólveres que possuía em sua coleção de armas, na forma de bala que invadira sua boca, irrompera seu crânio, e fizera litros de sangue encharcarem o chão de carpete.
   O corpo foi levado, o caso foi abafado, e a casa posta à venda junto a todos os itens das coleções. Por anos, entretanto, a casa vazia permaneceu. Entediado, eu observava diariamente suas portas de entrada duplas, aguardando que um novo morador viesse a me entreter.
   Porém não foram moradores que ocuparam minha visão nos próximos meses, mas sim o casal de jovens de nomes Célio e Renata. Não sei bem o que queriam. Uma aventura arriscada, ou simplesmente um local reservado para acasalamento. Em recente maioridade, ambos moravam com os pais e não dispunham de local algum para a devida privacidade do casal.

   Mas é fascinante observar como o desejo leva os ardentes a cometer as maiores loucuras.

   Instigados pela placa “Vende-se”, e sabidos dos rumores mal falados que alegavam o local sombrio como cenário de suicídio, o jovem casal arrombou a porta e invadiu os aposentos do casarão. Fizeram do local silencioso seu secreto e temporário ninho de apego. Repetiam o mal feito quase que diariamente, voltando todas as noites e invadindo o domicílio abandonado, utilizando os quartos, banheiros, a cozinha e a sala, todos repletos de coleções artísticas e ornamentais, para fazer aquilo que chamavam de amor.

   Mas é fascinante observar como o mundo destrói a ingenuidade.

   A maioridade de Célio veio com o obrigatório alistamento, e o pobre jovem foi forçado a adentrar o exército, deixando Renata desolada em espera. O casal não voltou a invadir o casarão amarelo, e minhas espiadas em suas noites de amor deram-se por encerradas assim. Mas não antes de deixar a casa pela última vez, a desvirtuada Renata levou consigo um dos discos organizados na estante dos vinis. O volume furtado de Engenheiros a permitiria ouvir incontáveis vezes a “Infinita Highway”, a fazendo lembrar do amado por todo o tempo em que estivesse longe em serviço militar.
   Acredito que passei mais de anos sem ver qualquer pessoa novamente na tal casa. Não sei ao certo
contar o tempo como vocês. Mas pude ver que bons períodos se passavam pelo alterar das cores das folhas que fartavam a copa volumosa da árvore de tronco retorcido a alguns metros de mim.
   A casa praticamente lançada ao abandono foi furtada mais de três vezes, em crimes consecutivos executados por quadrilhas. Logo, nenhum artefato das coleções do antigo proprietário permaneceu em seu interior. Completamente desnuda em ornamentos, e ainda assombrada pela história de suicídio, a residência teve um enorme declínio em seu preço de venda. A queda dos valores foi tão alta, que um interessado e paupérrimo pai solteiro juntou suas poucas economias e conseguiu adquirir o imóvel.
   Marcelo e sua filha Virgínia foram a nova família a qual assisti. Um pai amoroso e atencioso que, mesmo sem possuir muitos recursos, dava à filha toda a atenção e tempo dos quais dispunha. Ao lado do desejo de ver a pequenina Virgínia crescer, carregava consigo o sonho de se tornar um escritor. Suas horas vagas eram quase que completamente investidas na tentativa de escrever seus romances e contos. O tempo tornava-se pouco, e foi necessário que contratasse uma babá para cuidar de Virgínia. Contratou a jovem Denise, que morava ao fim da rua, e tentava reunir economias para pagar a faculdade.

   Mas é fascinante observar como mesmo os sonhos mais sinuosos às vezes necessitam de estímulo.

   A escrita de Marcelo por anos permaneceu empacada. Por mais que fosse criativo, necessitava de algum insight inspirador que lhe trouxesse alguma ideia original. Foi numa tarde de veraneio que uma mulher bateu a porta. Me esforcei para reconhecê-la enquanto Marcelo a atendia, até perceber que, por mais que sua aparência fosse bem mais velha do que eu me lembrava, era ninguém menos do que Renata.
   A já não mais jovem mulher decidira retornar ao casarão que há anos não invadia, na intenção de devolver o disco de vinil que furtara há tempos. Agora que estava casada com Célio, com quem fora mãe de dois filhos, não precisava mais de músicas na vitrola para saciar a falta que o amado lhe fizera.
   Do meu canto esverdeado no gramado, pude enxergar na expressão distante de Marcelo a maravilhosa ideia que surgiu em sua mente quando Renata lhe entregou o disco. Pude ler em seus olhos o modo como começou a pensar que, assim como a história daquele casal, muitas outras haviam passado pela mesmíssima residência. Decifrei no sorriso do aspirante à escritor que ele finalmente percebera que uma casa é repleta de memórias, e que tal concepção era uma ideia excelente para um livro.
   Após a ida de Renata, enxerguei pela janela o afoito Marcelo sentar-se em frente ao computador e escrever por horas, relatando em suas páginas um romance no qual de maneira criativa inventava histórias diversas que haviam ocorrido naquela casa.
   Foram necessários meses de contatos e esperas, mas uma editora logo se interessou pela obra. O romance foi publicado, e em pouquíssimos anos tornou-se um sucesso em nível nacional.

   Mas é fascinante observar como a fama sobe aos olhos mais rápido que a paixão.

   Focado em sua nova carreira de escritor profissional, Marcelo deixou a filha Virgínia sobre os cuidados da babá, e mudou-se para uma segunda casa em São Paulo, onde podia ter contato mais direto com editoras para cuidar de suas futuras publicações.
   Ainda que sentisse a falta do pai, Virgínia era sustentada por uma farta mesada que provinha do mesmo rotineiramente, enquanto a babá Denise ocupava o papel de pai e mãe, e se afeiçoava à garota cada vez mais.

   Mas é fascinante observar como ingênuas crianças crescem e tornam-se jovens insensatos.

   Após envolver-se numa relação promíscua, Virgínia engravidou aos dezesseis anos. Rebelando-se numa crise existencial por diversos motivos sem cabimento, abandonou o filho recém-nascido aos cuidados de Denise, e fugiu com o namorado para uma cidadezinha distante.
   Denise, ainda recebendo de Marcelo o dinheiro mensal para os cuidados da casa, deixou de lado quaisquer outras perspectivas de emprego e entregou-se inteiramente ao bebê. Deu a ele o nome de Danilo, e amou-o como a um filho. Passou a morar no casarão amarelo, como se este fosse seu, ainda que sustentada pelo dinheiro do patrão que nunca deixava de chegar.
   Foi fascinante para mim enxergar como a não mais babá deu a casa um estilo próprio. Repintando as paredes, trocando os azulejos, e organizando toda a decoração para uma atmosfera mais colorida e harmônica. Incomodava-a, contudo, algumas manchas avermelhadas que jamais saíam do carpete. Manchas estas que ela não sabia de onde vinham, mas que eu me lembrava bem de quando haviam sido respingadas do crânio estourado de Guilhermo.
   Denise foi então em busca de uma loja de artefatos de limpeza, à procura de um alvejante que pudesse as tais manchas eliminar. Foi atendida por um moço de charmoso cavanhaque chamado Victor, que se dispôs a atendê-la pessoalmente, indo até sua casa e testando o produto no carpete. O alvejante, contudo, fora apenas uma desculpa.
   Em sua ida até a residência, após terminado o serviço, Victor acabara sendo convidado para um jantar com Denise e o pequeno Danilo. Um jantar no qual o atendente se dera tão bem com o jovem garoto, que acabara chamando a atenção da mulher. Emocionei-me verdadeiramente ao enxergar pela janela a cena magnífica entre os três. Eram apenas um homem, uma mulher e um garoto, sem laços de sangue algum. Entretanto, pareciam verdadeiramente agir como uma família.

   Mas é fascinante observar como é mesmo por ações, e não por genética, que uma família se forma enfim.

   Victor e Denise, após alguns anos, se casaram numa simples cerimônia e adotaram Danilo como filho oficialmente registrado.  Por anos me deleitei com o romance de ambos, que habitavam o casarão como se a eles pertencesse. O dinheiro que ainda vinha aos montes do escritor cada vez mais famoso e abastado permitia que a nova família ali vivesse com fartura.
   Na posição que ocupava do jardim, me divertia ao ver o modo como se deitavam no meu gramado em frente à casa, e observavam as estrelas. Juntos, nomeavam as constelações com apelidos bobos, e murmuravam sobre a beleza dos tais pontos brilhantes lá de cima.
   Era incrível para mim também ver o pequeno Danilo crescer e se tornar um homem. Victor e Denise, já mais velhos, o haviam educado muitíssimo bem. Incentivaram-no a levar a sério a educação acadêmica, o que o levou a cursar a faculdade de Direito e tornar-se um reconhecido e pomposo advogado anos mais tarde.
   Com o filho formado, casado e já morando em casa própria, Denise e Victor aproveitaram os anos de casamento vivendo juntos na casa de tijolos amarelos. Amavam-se incondicionalmente, e juntos repetiam sempre o feito de observar as estrelas que tanto os entretinham. Diziam que o amor era para sempre, e que após décadas de casamento, um dia repousariam juntos no brilho mágico das constelações.

   Mas é fascinante observar como o destino às vezes intervém com curvas trágicas.

   Assisti com pesar ao sofrimento do casal quando Victor descobriu o tumor, e começou o tratamento. Foi quando enxerguei nos humanos a fabulosa arte de lutar pela vida. E a estupenda loucura de lutar pelo amor.
   Ainda assim... Victor se foi. Faleceu numa tarde nublada, deixando a pobre Denise num desolamento inconsolável. Observei-a chorando por dias... semanas... meses... tornando-se triste, deprimida e por fim louca.
   Assisti assustado a sua reação quando ela decidiu pôr fim a todas as memórias do casarão. Quando rogou em voz alta que não deixaria que o marido se tornasse apenas mais uma história... mais uma memória nos tijolos amarelos que acabaria indo parar nas páginas de um dos livros de Marcelo.
   Decidida a fazer com que o marido fosse o último e eterno habitante daquela casa, desfez-se do antigo estoque de uísque, despejando o líquido inflamável pelo carpete e ateando fogo em toda a construção.
   Assisti às lágrimas brotarem de seus olhos enquanto o casarão era consumido pelas chamas.

   Mas é fascinante observar como os humanos são propensos à loucura.

   Apesar de que... eu, em minha singela textura de porcelana, com este gorro pontudo e este sorriso que daqui nunca sai, sonho ainda em um dia saber como é isso.
   Sonho em saber como é possuir essa loucura chamada amor. Essa loucura que permite à Denise que, por motivo nenhum, abra a caixa de correio e vasculhe seu interior. Lá dentro, ela encontra uma fresta suja e empoeirada. E dentro da fresta, percebe que há preso um bilhete. Abre. Lê. E, por fim, chora. Chora incontrolavelmente, pois as palavras ali escritas mexem com algo dentro dela.
   Eu, em minha ignorância de gnomo de jardim, sei que o bilhete em suas mãos foi deixado ali há muito tempo. Mas ela, em sua magia de ser humano, acredita fielmente que é um recado de Victor.

“Ainda te olho todos os dias daqui de cima, com o mesmo amor que sempre tive por você.”

Texto: Felippe Alves Barbosa